À primeira vista, parece ser unicamente de matéria e luz que o mundo é feito.
Eu vejo. E acredito no que vejo, sem parar pra pensar se devo desconfiar dos meus olhos, ou do que colocam diante deles. É disso que o mundo é feito, penso, de sinais de trânsito, placas, carros, prédios residenciais e hospitais, livros, comidas variadas, relacionamentos por conveniência (de certa forma, ultimamente, relacionamentos tem sido apresentados como tão funcionais quanto um eletrodoméstico, o que explica citá-lo no meio de tanta coisa sem vida, e isso é triste), computadores, e um pouco de entretenimento, pra não endoidar quando me der conta de que nada disso faz sentido. Nada disso faz sentido, penso. É disso que o mundo é feito?
Repito pra mim, nos dias que confiar nos meus olhos é mais confortável que pensar, que o que eu chamo de "mundo" na verdade é o meu mundo. É só um dos bilhões de pontos de vistas que a vida pode ter. É uma caricatura da realidade. E que o fato de o que eu percebo como realidade ser frequentemente desanimador não deveria excluir a hipótese da existência de uma realidade, e sim me impulsionar em busca dela. Eu estou cercada de mentiras, as minhas e as deles, nessa "cidade que respira a praga de amar mais as criaturas do que o Criador", nessas ruas idólatras, cheias de Deus, mas com distrações demais pra se perceber. Eu sou um ser humano meio deformado por essa maldição, e é por isso que tento me lembrar, apesar de tudo, que não é disso que é feito o mundo. Tento me imaginar como um satélite, vendo a terra de fora, com todas as suas pessoas, complicações, desgraças, guerras, brigas de casal, amizades dissipadas, viciados em drogas, psicopatas e pais ausentes; a terra, com toda sua música, instantes de beleza, auroras e crepúsculos, sorrisos involuntários, compaixão e movimento, risadas, aniversários, bodas de prata, crianças brincando com bolhas de sabão, crianças rindo, crianças, ciência, poesia, literatura, arte, sexo, amor sacrificial, domingos chuvosos, todo tipo de frutas, roupas antigas, felicidade; a terra, inserida tão minúscula nesse universo quase infinito de outras milhões de estrelas, explodindo, com esse vácuo tão cheio de coisas. Penso nisso tudo, e às vezes, enlouqueço. Misturo várias vontades reprimidas. A de gritar, de chorar, de perguntar, de sacudir alguém na rua, "você também não acha que há algo errado com esse mundo?". Não faço nada disso, mas continuo olhando pela janela, desviando a vista de algumas partes, sabendo que eu não estou captando quase nada do que é a vida, mas não podendo fazer nada sobre isso. Há algo que todo mundo está deixando passar.
Escolho olhar através do satélite porque faz mais sentido do que minha cabeça caótica, doentia, que nunca representa a vida como ela é de fato. Mas no fim das contas, o mundo é rico. Em tudo, menos em amor. As dicas que essa abundância sugere me fazem pensar em tudo o que há que eu não conheço, e nunca virei a conhecer: na história, nos primórdios, no primeiro dia, na primeira palavra, na primeira dor. Hoje em dia, no lugar em que vivo, nós somos um povo sem história e por isso, sem identidade. Nós estamos alienados porque já não nos interessa como chegamos aqui. Tudo o que sabemos é que chegamos, e às vezes nem nos damos conta do que significa isso. Vivemos sem muita consciência, uma regressão evolutiva, mas continuamos fazendo as coisas. Estudando. Namorando. Pegando o ônibus. Trabalhando. Comprando casas. Casando. Arrastando os dias conosco porque foi exatamente isso que aprendemos a fazer. Um dia nós temos um insight de realidade. Acontece em qualquer lugar, em qualquer circunstância, mas todo mundo tem: dura dois segundos, e basta. A gente respira o ar puro do resto da humanidade que há em nós e sabemos que não somos, e nada é, o que deveria ser.
Mas ninguém se move, e voltamos às mentiras.
Penso nisso, e quase enlouqueço. A ideia de uma verdade fora de mim é completamente coerente com essa bagunça. Não faz sentido que a bagunça exista justamente porque esquecemos que a realidade existe fora de nós? Não é por isso que deixamos de ser livres? É isso que eu tento fazer com que meus olhos enxerguem. Fora da verdade, não há liberdade.
Então, eu imagino Deus. Ele está, de alguma forma misteriosa e encoberta, perturbadoramente presente em tudo isso. Absolutamente nada escapa de suas impressões digitais. Eu penso em Deus, e penso que Deus conhece tudo. Isso me enlouquece, também. Eu não chego nem perto de compreender o que significa essa frase. Então repito pra mim. Deus conhece tudo. Ele está em tudo, mas não é tudo, e o tudo não é Deus. Deus é Santo. Três vezes. Isso é algo tão absolutamente, essencialmente distinto da minha natureza e da natureza de tudo o que conheço, que é insano meditar nisso por mais de três minutos. Deus não é criado. Tudo o que eu posso ver pode ser incluído na categoria de criado. Tudo teve um começo. É por isso que posso estudar história. Porque os eventos tem início e fim. Porque o tempo passa. Porque passamos pelo tempo. Porque construímos e destruímos. Porque mudamos. Porque mudamos. Porque mudamos. Deus não é nada disso, nada da "realidade" socialmente construída. Ninguém está, ao mesmo tempo, mais envolvido e mais separado do mundo do que Ele. Penso no quão separado Ele está. Os nossos pecados e desvios e fracassos não afetam em nada sua santidade. A nossa indiferença ativa não altera em nada sua essência amorosa. Deus é. É plausível que tudo o que há debaixo nos céus, e também nos céus, seja medido em relação a Ele. Porque Ele é. Simples. Insondável. Penso no quão envolvido Ele escolheu estar. Penso em Jesus. Penso que é uma ideia absurda, a de Deus tornar-se homem (é uma ideia absurda Deus tornar-se), mas Jesus não me deixa escolhas. É verdade. Ele é a verdade que eu busco, incansável. Ele via o mundo, a vida, as pessoas, a matéria, sem nenhuma complicação, sem medo de ser relativo, porque Ele próprio era o absoluto pelo qual tudo é medido. Jesus é um humano que entendeu do que a vida é feita, porque a vida é feita Dele mesmo. Há uma continuidade entre Ele e o que está em volta Dele - as pessoas com quem Ele conviveu, sua família, as cidades, a comida que ele multiplicou, as roupas que vestiu, o chão no qual andou, meu Deus, o chão no qual andou. Parece que a criação dança em volta dele, mesmo que ainda meio torta, fora do ritmo, mas há uma dança. E Ele andou com seus pés humanos, por esse chão tão mundano, com essa poeira tão suja sobre si, e falou, usando uma linguagem humana, e palavras cognoscíveis. Ele morreu. Ele morreu. Ele morreu. Assim como é necessário que o que é corruptível seja absorvido pelo incorruptível, ele absorve em seu próprio corpo (um corpo físico, em carne) a morte que persegue os meus passos. Ele morreu porque apenas morrendo e ainda assim, sobrevivendo, poderia vencer a morte. Então Ele ressuscita, é o que dizem, e essa, novamente, é uma frase absurda, mas não posso crer em outra coisa. Ele está vivo: penso nisso. Mais do que qualquer coisa, isso me enlouquece. Eu não consigo encontrar limites que cheguem longe o suficiente pra esse tipo de Amor. Ele se move numa direção e de um jeito que os amores desse lado do mundo não se movem. É uma escolha livre, uma teimosia em se relacionar com uma raça rebelde, monstruosamente deficiente, complicada e destituída de um coração de verdade. Uma raça humana, só que desumana. Mas ainda assim, querida, desejada, por esse Deus incompreensível que desceu tão baixo pra mostrar quem é e pra mostrar que leva o amor muito a sério, e que nos leva a sério. Eu tento ver, agora, as coisas por outra ótica: a da redenção. E não uma redenção que surge dentro de mim, como se houvesse resquício de vida própria em mim. Como se eu pudesse gerar vida. Eu sou um zumbi. Pelo visto, todo mundo é. Eu estou morta - não, pior, eu estou morrendo. A não ser que a Vida venha me resgatar e fazer alguma coisa com meus restos mortais - filho do homem, podem esses ossos tornar a viver? - assim permanecerei. Mas o Amor veio. A redenção está acontecendo, aqui e agora, fora de mim, mas se infiltrando pelas minhas células e de alguma forma, de alguma forma estranha, me alcançando também. Eu penso nisso. E consigo me manter sã.
Eu não consigo compreender as dimensões que esse Amor alcança. Eu não consigo descrever a beleza que ele traz em seu âmago, como ele consegue restaurar e ressuscitar tudo o que está em seu caminho - isso é o milagre... Não sei de sua largura, profundidade, comprimento. Não sei de que substância é feita o mistério que o compõe. Mas eu sei que ele passa por aqui.
Eu sei que quando Ele vier, todos os surdos vão ouvir a música claramente, e a criação vai voltar a dançar no ritmo. E todos os olhos, mesmo os cegos, vão enxergar a vida, o mundo, e Ele próprio. Porque tudo vai ser desnudado. E tudo será, finalmente, real.
você é incrivelmente admirável!
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