“você
pode falar comigo”, ela me diz, e eu penso que a voz dela é capaz
de criar casas e erguer castelos e também de derrubá-los. ao mesmo
tempo. “você precisa falar
comigo, ou com alguém”.
é
verdade, eu penso, eu preciso. eu deveria. eu deveria falar tudo:
como ela é talvez a única pessoa, ou uma das poucas, de quem eu
nunca me cansei. de como o cansaço não é sobre as pessoas, é
sobre o monstro dentro de mim que se alimenta de solidão e está
sempre faminto, e sobre como eu gosto dele, e por isso continuo
cuidando dele, mesmo sabendo que no fim do dia ele é um monstro e
que um dia ele vai me comer viva também. mas o monstro nunca teve
uma chance contra ela, contra minha vontade de estar com ela. eu
queria dizer isso. que eu não a escolhi porque eu nunca senti que
tive escolha; era uma honra, não se rejeitam honras como essa. que
eu podia passar dias e dias ao lado dela sem sentir o
monstro e que pra alguém como eu essa é a maior forma de elogio que
se pode dar. de como eu achava, lá no início, que ela era uma
espécie de anjo e que mesmo hoje em dia, deppois de tantas verdades
dos dois lados, eu não descartei essa possibilidade ainda. queria
dizer que ela apareceu e de repente era tudo riso dentro de mim, riso
e leveza. que nunca foi um fardo. que eu nunca fui boa, eu nunca fui
incrível, e eu achava que estava tudo bem nisso. mas minha pele foi
ficando grossa e minha alma foi ficando sem cor e de repente eu era
menos uma pessoa e mais um brinquedo quebrado, um desses muitos
brinquedos quebrados que ela está sempre consertando. é isso que
ela faz, você sabe?, ela conserta as pessoas.
eu
não queria ser consertada, não por ela, mas eu descobri isso tarde
demais; talvez nós duas tenhamos descoberto tarde demais.
o
monstro agarra meus punhos do lado de dentro e vem com sua voz
sempre-suave no meu ouvido, ou nós podemos deixar isso tudo
pra lá.
e
deixar ir.
ela
é tão boa, eu penso, enquanto sinto um sabor amargo na língua lá
perto da garganta. e eu sou tão tóxica. que instinto humano
estranho, esse, de querer destruir as coisas bonitas.
por
isso a política do silêncio. como poderia explicar?
não
é que eu não tenha mais um coração, eu quero dizer, mas
não digo. mas o que tenho desaprendeu a cantar todas as
canções. você iria querer isso? se você fosse eu, você forçaria
alguém a isso?
você
forçaria alguém que você ama a
permanecer?
“é
seu maior erro, sabe”, ela diz, cansada. eu tenho certeza que ela
não vê o monstro, mas às vezes, acho que ela desconfia, porque ela
completa: “você sempre deixa todo mundo ir embora”.
ela
sabe mais. estou cansada, também, e como sempre, não respondo
nada.