quarta-feira, 12 de novembro de 2014

As boas consciências, Júlio Cortazár:

Você é assim: inteligente, clara, refinada,
vive em harmonia com as pessoas, as coisas e as plantas que escolheu morosamente,
recusando sem ruído o que quebrava o ritmo diurno,
a calma das suas noites.
O que não significa que você ignore este caos,
este fragor de sangue que chamam de século vinte.
Ao contrário, acompanha bem de perto coisas como
o racismo, o apartheid e as multinacionais,
o sangue na Argentina e Chile e Paraguai e etc.
Toda tarde às seis compra Le Monde
e se indigna sinceramente porque tudo é violência, violação e mentira
em Dublin em Beirute em Santiago em Bangroc.
E depois quando chegam Paulita e Juan e Pepe
você explica com chá e torradas que não pode ser,
que como pode ser que isso seja assim,
e a mesa se enche de protestos democráticos,
de migalhas humanísticas e Direitos Humanos (cf. Unesco).

Todos concordam e todos sentem
que estão do lado justo, que é preciso esmagar Pinochet, mas
curiosamente
nem eles nem vocês jamais fizeram nada
para ajudar (digamos, deram dinheiro,
solidarizaram-se alguns com campanhas jornalísticas),
porque gastam o melhor do tempo
esmagando o fascismo com perfeitas razões silogísticas
e sentimentos impecáveis.
É evidente que ler Le Monde
já é um combate diante dos que leem o Figaro.

O importante é saber onde está a verdade
e repetir e repetir todo dia para os mesmos amigos no mesmo café.
Quase uma militância ou praticamente isso,
quase um perigo porque numa dessas
um fascista ouve e você é fichado na hora.

Oh querida, já é tarde, vá dormir, mas antes, claro
as últimas notícias.

Mataram
Orlando Letelier. Que horror, não é mesmo,
Isso não pode ser, essa violência
tem que acabar.
(Toca o telefone, é Paulita
que acabou de saber.)

Dá gosto de ver como você e sua turma participam
da história.
Você vai dormir tão mal, não é mesmo, é melhor
ficar ouvindo música
até que chegue o sono dos justos.

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